quarta-feira, 26 de abril de 2023

Que coisa, hein?!

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Coisa*

A palavra coisa é um bombril do idioma. Tem mil e uma utilidades. É aquele tipo de termo muleta ao qual a gente recorre sempre que nos faltam palavras para exprimir uma ideia. Coisas do português. 

A natureza das coisas: gramaticalmente, coisa pode ser substantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma coisificar. E no Nordeste há coisar: “Ó, seu coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?” Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado. Já as coisas nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais, registra o Aurélio. E deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as coisas, os seios” (Riacho Doce, José Lins do Rego). Na Paraíba e em Pernambuco, coisa também é cigarro de maconha.     

Em Olinda, o bloco carnavalesco Segura a Coisa tem um baseado como símbolo em seu estandarte. Alceu Valença canta: “Segura a coisa com muito cuidado / Que eu chego já.” E, como em Olinda sempre há bloco mirim equivalente ao de gente grande, há também o Segura a Coisinha.

Na literatura, a coisa é coisa antiga. Antiga, mas modernista: Oswald de Andrade escreveu a crônica “O Coisa” em 1943. A coisa é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu A força das coisas, e Michel Foucault, As palavras e as coisas.     

Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem. Menos o trem, que lá é chamado de a coisa. A mãe está com a filha na estação, o trem se aproxima e ela diz: “Minha filha, pega os trem que lá vem a coisa”.      

Devido lugar: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (…)”. A garota de Ipanema era coisa de fechar o Rio de Janeiro: “Mas se ela voltar, se ela voltar / Que coisa linda / Que coisa louca.” Coisas de Jobim e de Vinicius, que sabiam das coisas.

Sampa também tem dessas coisas (coisa de louco!), seja quando canta “Alguma coisa acontece no meu coração”, de Caetano Veloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos (que é coisa nossa).      

Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim!      

Coisa de cinema! A Coisa virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu Coisa no recente Quarteto Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV o personagem ganhou também desenho animado, nos anos 70. E no programa Casseta e Planeta, Urgente! Marcelo Madureira faz o personagem Coisinha de Jesus.       

Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados, coisa nenhuma vira coisíssima. Mas a coisa tem história na MPB. No II Festival da Música Popular Brasileira, em 1966, estava na letra das duas vencedoras: Disparada, de Geraldo Vandré (“Prepare seu coração / Pras coisas que eu vou contar”), e A banda, de Chico Buarque (“Pra  ver a banda passar / Cantando coisas de amor”), que acabou de ser relançada num dos CDs triplos do compositor, que a Som Livre remasterizou. Naquele ano do festival, no entanto, a coisa tava preta (ou melhor, verde-oliva). E a turma da Jovem Guarda não tava nem aí com as coisas: “Coisa linda / Coisa que eu adoro”.      

Cheio das coisas. As mesmas coisas, Coisa bonita, Coisas do coração, Coisas que não se esquece, Diga-me coisas bonitas, Tem coisas que a gente não tira do coração. Todas essas coisas são títulos de canções interpretadas por Roberto Carlos, o rei das coisas. Como ele, uma geração da MPB era preocupada com as coisas.

Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é uma questão de quantidade (afinal,”são tantas coisinhas miúdas”). Já para Beth Carvalho, é de carinho e intensidade (“ô coisinha tão bonitinha do pai”). Todas as coisas e eu é título de CD de Gal. “Esse papo já tá qualquer coisa…Já qualquer coisa doida dentro mexe.” Essa coisa doida é uma citação da música Qualquer coisa, de Caetano, que canta também: “Alguma coisa está fora da ordem.”       

Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de coisas é o indivíduo chato, pleno de não me toques. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o salário mínimo não dá pra coisa nenhuma.      

A coisa pública não funciona no Brasil. Desde os tempos de Cabral. Político quando está na oposição é uma coisa, mas, quando assume o poder, a coisa muda de figura. Quando se elege, o eleitor pensa: “Agora a coisa vai”. Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. Uma coisa é falar; outra é fazer. Coisa feia! O eleitor já está cheio dessas coisas!       

Coisa à  toa. Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um coisa à toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema” Eu, etiqueta”, Drummond radicaliza: “Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente.” E, no verso do poeta, coisa vira cousa.      

 Se as pessoas foram feitas para ser amadas e as coisas, para ser usadas, por que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as pessoas? Bote uma coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não são coisas. Há coisas que o dinheiro não compra: paz, saúde, alegria e outras cositas más.

Mas, “deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida”, cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema Marcha, de Cecília Meireles, uma coisa linda. Por isso, faça a coisa certa e não esqueça o grande mandamento: “Amarás a Deus sobre todas as coisas”.     

Entendeu o espírito da coisa?

Paulo Jorge de Jesus
Professor Especialista em Língua Portuguesa

PS: Texto de livre circulação na Internet, sem indícios de autoria. 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Tributo às Proparoxítonas

    

      https://blog.lucianoreis.com/

As proparoxítonas são o ápice da cadeia alimentar do léxico.

Estão para as outras palavras assim como os mamíferos para os artrópodes.

As palavras mais pernósticas são sempre proparoxítonas. Das mais lânguidas às mais lúgubres. Das anônimas às célebres.

Se o idioma fosse um espetáculo, permaneceriam longe do público, fingindo que fogem dos fotógrafos e se achando o máximo.

Para pronunciá-las, há que ter ânimo, falar com ímpeto - e, despóticas, ainda exigem acento na sílaba tônica!

Sob qualquer ângulo, a proparoxítona tem mais crédito.

É inequívoca a diferença entre o arruaceiro e o vândalo.

O inclinado e o íngreme.

O irregular e o áspero.

O grosso e o ríspido.

O brejo e o pântano.

O quieto e o tímido.

Uma coisa é estar na ponta – outra, no vértice.

Uma coisa é estar no topo – outra, no ápice.

Uma coisa é ser fedido – outra é ser fétido.

É fácil ser valente, mas é árduo ser intrépido.

Ser artesão não é nada, perto de ser artífice.

Legal ser eleito Papa, mas bom mesmo é ser Pontífice.

(Este último parágrafo contém algo raríssimo: proparoxítonas que rimam. Porque elas se acham únicas, exóticas, esdrúxulas. As figuras mais antipáticas da gramática.)

Quer causar um impacto insólito? Elogie com proparoxítonas.

É como se o elogio tivesse mais mérito, tocasse no mais íntimo.

O sujeito pode ser bom, competente, talentoso, inventivo – mas não há nada como ser considerado ótimo, magnífico, esplêndido.

Da mesma forma, errar é humano. Épico mesmo é cometer um equívoco.

Escapar sem maiores traumas é escapar ileso – tem que ter classe pra escapar incólume.

O que você não conhece é só desconhecido. O que você não tem a mínima ideia do que seja – aí já é uma incógnita.

Ao centro qualquer um chega – poucos chegam ao âmago.

O desejo de ser uma proparoxítona é tão atávico que mesmo os vocábulos mais básicos têm o privilégio (efêmero) de pertencer a essa família – e são chamados de oxítonos e paroxítonos. Não é o cúmulo?

 

 

Eduardo Affonso é escritor e arquiteto.

Escreve no site https://www.jornaldacidadeonline.com.br/blogs/

 

Paulo Jorge de Jesus
Professor Especialista em Língua Portuguesa

 

terça-feira, 14 de março de 2023

Meia, Meia, Meia, Meia ou Meia?

 História da língua portuguesa - Estudo Kids

 https://www.estudokids.com.br/

Difunde-se com frequência, pelo menos no Brasil, a crença de que a Língua Portuguesa é uma das mais difíceis do mundo, inclusive para nós, brasileiros. Daí a visão de que a dificuldade no manuseio pelos seus usuários, não só na oralidade mas também na escrita da variante padrão, estaria ligada à estrutura da nossa língua. É um equívoco. Todas as línguas apresentam suas especificidades que resultam em dificuldades para o falante e o produtor textual, em menor ou maior grau.

A polissemia, por exemplo, representa um recurso linguístico recorrente em várias línguas e demonstra a elasticidade que uma palavra ou expressão pode conter em sua semântica alimentada por seus usuários.

No texto desta semana, trazemos uma história que brinca com os sentidos da palavra “meia”, segundo usuários brasileiro e africano.

Ótima leitura!

 

 Meia, Meia, Meia, Meia ou Meia?

Na recepção dum salão de convenções, em Fortaleza...

– Por favor, gostaria de fazer minha inscrição para o Congresso.

– Pelo seu sotaque vejo que o senhor não é brasileiro. O senhor é de onde?

– Sou de Maputo, Moçambique.

– Da África, né?

– Sim, sim, da África.

– Aqui está cheio de africanos, vindos de toda parte do mundo. O mundo está cheio de africanos.

– É verdade. Mas se pensar bem, veremos que todos somos africanos, pois a África é o berço antropológico da humanidade...

– Pronto, tem uma palestra agora na sala meia oito.

– Desculpe, qual sala?

– Meia oito.

– Podes escrever?

– Não sabe o que é meia oito? Sessenta e oito, assim, veja: 68.

– Ah, entendi, “meia” é “seis”.

– Isso mesmo, meia é seis. Mas não vá embora, só mais uma informação: A organização do Congresso está cobrando uma pequena taxa para quem quiser ficar com o material: DVD, apostilas, etc., gostaria de encomendar?

– Quanto tenho que pagar?

– Dez reais. Mas estrangeiros e estudantes pagam “meia”.

– Huummm! que bom. Ai está: “seis” reais.

– Não, o senhor paga meia. Só cinco, entende?

– Pago meia? Só cinco? “Meia” é “cinco”?

– Isso, meia é cinco.

– Tá bom, “meia” é “cinco”.

– Cuidado para não se atrasar, a palestra começa às nove e meia.

– Então já começou há quinze minutos, são nove e vinte.

– Não, ainda faltam dez minutos. Como falei, só começa às nove e meia.

– Pensei que fosse as 9h05, pois “meia” não é “cinco”? Você pode escrever aqui a hora que começa?

– Nove e meia, assim, veja: 9h30.

– Ah, entendi, “meia” é “meia”.

– Isso, mesmo, nove e trinta. Mais uma coisa senhor, tenho aqui um fôlder de um hotel que está fazendo um preço especial para os congressistas, o senhor já está hospedado?

– Sim, já estou na casa de um amigo.

– Em que bairro?

– No Trinta Bocas.

– Trinta bocas? Não existe esse bairro em Fortaleza, não seria no Seis Bocas?

– Isso mesmo, no bairro “Meia” Boca.

– Não é meia boca, é um bairro nobre.

– Então deve ser “cinco” bocas.

– Não, Seis Bocas, entende, Seis Bocas. Chamam assim porque há um encontro de seis ruas, por isso seis bocas. Entendeu?

– Acabou?

– Não. Senhor é proibido entrar no evento de sandálias. Coloque uma meia e um sapato...

O africano infartou...

Paulo Jorge de Jesus
Professor Especialista em Língua Portugues
a

PS: Texto de livre circulação na Internet, sem indícios de autoria.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Amor Gramatical

Obra: O Abraço de amor do Universo, a Terra (México), eu, Diego e Senhor Xolotl, de Frida Khalo

  O Abraço de amor do Universo, a Terra (México), eu, Diego e Senhor Xolotl, de Frida Khalo        

 

Caras (os) Leitoras (os),

 

O texto desta semana me foi enviado por Julio Gomes, um jornalista amigo meu, e posto aqui em razão da criatividade demonstrada pela autora no manuseio com a Língua Portuguesa.

Alie-se à criatividade, a competência literária, pois o texto atiça a nossa imaginação ao provocar imagens de grande poder de sedução.

Credita-se sua autoria a uma aluna da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco, em um concurso interno promovido pelo professor titular da cadeira de Gramática Portuguesa. Desnecessário dizer que a autora foi aprovada, aqui pra nós, com louvor.

É pra se deliciar!

 (sem título)

Era a terceira vez que aquele substantivo e aquele artigo se encontravam no elevador. Um substantivo masculino, com um aspecto plural, com alguns anos bem vividos pelas preposições da vida. E o artigo era bem definido, feminino, singular: era ainda novinha, mas com um maravilhoso predicado nominal.

Era ingênua, silábica, um pouco átona, ao contrário dele: um sujeito oculto, com todos os vícios de linguagem, fanáticos por leituras e filmes ortográficos. O substantivo gostou dessa situação: os dois sozinhos, num lugar sem ninguém ver e ouvir. E sem perder essa oportunidade, começou a se insinuar, a perguntar, a conversar.

O artigo feminino deixou as reticências de lado, e permitiu esse pequeno índice. De repente, o elevador para, só com os dois lá dentro: ótimo, pensou o substantivo, mais um bom motivo para provocar alguns sinônimos. Pouco tempo depois, já estavam bem entre parênteses, quando o elevador recomeça a se movimentar: só que em vez de descer, sobe e para justamente no andar do substantivo. Ele usou de toda a sua flexão verbal, e entrou com ela em seu aposto.

Ligou o fonema, e ficaram alguns instantes em silêncio, ouvindo uma fonética clássica, bem suave e gostosa. Prepararam uma sintaxe dupla para ele e um hiato com gelo para ela. Ficaram conversando, sentados num vocativo, quando ele começou outra vez a se insinuar.

Ela foi deixando, ele foi usando seu forte adjunto adverbial, e rapidamente chegaram a um imperativo, todos os vocábulos diziam que iriam terminar num transitivo direto.

Começaram a se aproximar, ela tremendo de vocabulário, e ele sentindo seu ditongo crescente: se abraçaram, numa pontuação tão minúscula, que nem um período simples passaria entre os dois. Estavam nessa ênclise quando ela confessou que ainda era vírgula; ele não perdeu o ritmo e sugeriu uma ou outra soletrada em seu apóstrofo. É claro que ela se deixou levar por essas palavras, estava totalmente oxítona às vontades dele, e foram para o comum de dois gêneros.

Ela totalmente voz passiva, ele voz ativa. Entre beijos, carícias, parônimos e substantivos, ele foi avançando cada vez mais: ficaram uns minutos nessa próclise, e ele, com todo o seu predicativo do objeto, ia tomando conta.

Estavam na posição de primeira e segunda pessoa do singular, ela era um perfeito agente da passiva, ele todo paroxítono, sentindo o pronome do seu grande travessão forçando aquele hífen ainda singular. Nisso a porta abriu repentinamente. Era o verbo auxiliar do edifício. Ele tinha percebido tudo, e entrou dando conjunções e adjetivos nos dois, que se encolheram gramaticalmente, cheios de preposições, locuções e exclamativas. Mas ao ver aquele corpo jovem, numa acentuação tônica, ou melhor, sub-tônica, o verbo auxiliar diminuiu seus advérbios e declarou o seu particípio na história.

Os dois se olharam, e viram que isso era melhor do que uma metáfora por todo o edifício. O verbo auxiliar se entusiasmou e mostrou o seu adjunto adnominal. Que loucura, minha gente. Aquilo não era nem comparativo: era um superlativo absoluto. Foi se aproximando dos dois, com aquela coisa maiúscula, com aquele predicativo do sujeito apontado para seus objetos.

Foi chegando cada vez mais perto, comparando o ditongo do substantivo ao seu tritongo, propondo claramente uma mesóclise-a-três. Só que as condições eram estas: enquanto abusava de um ditongo nasal, penetraria ao gerúndio do substantivo, e culminaria com um complemento verbal no artigo feminino.

O substantivo, vendo que poderia se transformar num artigo indefinido depois dessa, pensando em seu infinitivo, resolveu colocar um ponto final na história: agarrou o verbo auxiliar pelo seu conectivo, jogou-o pela janela e voltou ao seu trema, cada vez mais fiel à língua portuguesa, com o artigo feminino colocado em conjunção coordenativa conclusiva.

Paulo Jorge de Jesus
Professor Especialista em Língua Portugues
a