Luiz Costa Pereira Junior, editor da revista
Língua Portuguesa, conta, na edição de dezembro do ano que findou, a origem do texto
Lacraia, de
Manoel de Barros. Veja:
“
Em 2005, pedi a Manoel que me enviasse um texto sobre a sua
relação com a palavra. Recusou-se a remeter o escrito via internet, que
não era homem de lidar com essas coisas. Mandou, pelo correio mesmo, uma
folha de papel almaço, ordenadamente datilografada e assinada, coberta
pela tinta gasta da máquina, seus repuxos e saltitos de letra, o estilo
refinado pela crueza de menino do mato.”
Na capa da revista, há uma chamada: “
Manoel de Barros Em texto exclusivo, poeta conta como criou um verso imortal.”
Ótima Leitura!
Lacraia
Um trem de ferro com vinte vagões quando descarrila, ele sozinho não
se recompõe. A cabeça do trem ou seja a máquina, sendo de ferro não age.
Ela fica no lugar. Porque a máquina é uma geringonça fabricada pelo
homem. E não tem ser. Não tem destinação de Deus. Ela não tem alma. É
máquina. Mas isso não acontece com a lacraia. Eu tive na infância uma
experiência que comprova o que falo. Em criança a lacraia sempre me
pareceu um trem. A lacraia parece que puxava vagões. E todos os vagões
da lacraia se mexiam como os vagões do trem. E ondulavam e faziam curvas
como os vagões do trem. Um dia a gente teve a má ideia de descarrilar a
lacraia. E fizemos essa malvadeza. Essa peraltagem. Cortamos todos os
gomos da lacraia e os deixamos no terreiro. Os gomos separados como os
vagões da máquina. E os gomos da lacraia começaram a se mexer. O que é a
natureza! Eu não estava preparado pra assistir aquela coisa estranha.
Os gomos da lacraia começaram a se mexer e se encostar um no outro para
se emendarem. A gente, nós , os meninos, não estávamos preparados para
assistir aquela coisa estranha. Pois a lacraia estava se recompondo. Um
gomo da lacraia procurava o seu parceiro parece que pelo cheiro. A gente
como que reconhecia a força de Deus. A cabeça da lacraia estava na
frente e esperava os outros vagões se emendarem. Depois, bem mais tarde
eu escrevi este verso: Com pedaços de mim eu monto um ser atônito. Agora
me indago se esse verso não veio da peraltagem do menino. Agora quem
está atônito sou eu.
Manoel de Barros
Abraços Fraternos!
Paulo Jorge
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