quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

O ovo da discórdia



SÃO PAULO – O aborto é moralmente justificável? Esqueça essa pergunta. Não chegaremos tão cedo a um consenso. Proponho então analisar a questão sob outro ângulo: mulheres que abortam voluntariamente merecem ir para a cadeia?

Se você respondeu afirmativamente, prepare-se para as consequências. Estima-se que ocorra no Brasil 1 milhão de abortos induzidos por ano (utilizo aqui o número calculado por Mario Francisco Giani Monteiro e Leila Adesse para 2005, o mais recente estudo que encontrei). Para encarcerar toda essa mulherada, como exige a lei, o país precisaria construir, a cada dia, a bagatela de 5,5 presídios femininos (unidades de 500 vagas).

A conta é conservadora porque não considera os médicos, enfermeiras e comadres que mereceriam ser presos na qualidade de cúmplices. Seria também necessário edificar um bom número de orfanatos, para abrigar as crianças que ficariam desassistidas, enquanto suas mães cumprem pena. Também teríamos de criar brigadas médico-policiais especializadas em identificar e processar as criminosas e quem as tenha ajudado.

Imagino que, exceto por empreiteiros de olho nos lucrativos contratos, ninguém deseja uma realidade dessas para o Brasil. E manter uma lei que manda pôr na cadeia pessoas que não queremos ver numa penitenciária é uma boa definição de hipocrisia. Fez muito bem, portanto, o Conselho Federal de Medicina ao dar apoio à proposta de liberalizar a legislação. Médicos, mais do que qualquer outra categoria, devem abster-se de fazer juízos morais sobre o comportamento de seus pacientes.

Independentemente do que se pense sobre o aborto, isso não é matéria para o direito penal. Na verdade, espanta-me a pouca fé dos religiosos que defendem leis duras. Se Deus existe, é onisciente e acha mesmo que interromper a gravidez é um pecado horrível, saberá punir na outra vida quem o cometeu, dispensando-nos de fazê-lo aqui na Terra.

Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo, 22/03/2013

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