segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

A Arte de Convencer



A dissertação-argumentativa é um gênero textual da esfera escolar que tem como um de seus objetivos expor uma tese (ponto de vista) acerca de um determinado tema (sugerido na proposta de redação), baseada em argumentos e estratégias argumentativas sólidas e consistentes, alicerçadas nas mais diversas áreas do conhecimento.

Este primeiro objetivo – que não é nada fácil de ser alcançado, aliás – mira um propósito ainda maior (que é o mesmo que o deste e de tantos outros textos): convencer o leitor de que a tese ali exposta é correta e adequada para aquele contexto.

No fundo, o maior objetivo de uma dissertação-argumentativa é, por meio de um texto organizado, coerente e coeso – tanto estruturalmente quanto ideologicamente – convencer o leitor de que aquelas ideias são verdadeiras e devem ser tidas como corretas ou adequadas para aquela abordagem de determinado tema.

Nesse sentido, a dissertação-argumentativa bem escrita é um exemplo da arte do convencer o outro. Não é à toa que o autor desse gênero, em vários manuais de redação, é nomeado como “voz da razão e da verdade” e, por isso, o foco está nas ideias apresentadas e não no autor e, consequentemente, o texto deve ser escrito de maneira impessoal, sem estabelecer diálogo entre autor e leitor.

É como se o autor fosse uma voz “divina”, professando verdades, e o leitor fosse um ser totalmente passivo, um sujeito “assujeitado”, sem pensamentos, sentimentos… sem opinião própria. Ou seja, uma mentira.

Um leitor passivo, sem autonomia, sem senso crítico e sem opinião própria só existe nos manuais de redação para vestibulares e concursos públicos. Como dissemos no texto da semana passada (leia aqui), todos nós pensamos algo sobre tudo o que nos cerca e não somos neutros como podemos até imaginar. Nesse sentido, o convencimento é uma verdadeira arte.

Num mundo lotado de informações, no qual todos os dados e fatos circulam numa rapidez tremenda, como convencer as pessoas acerca de um ponto de vista? Com argumentos sólidos e consistentes, amparados no conhecimento acadêmico e científico e que saiam do senso comum, esta entidade que nos ronda a todo o momento, principalmente na internet, muitas vezes disfarçada de fake news que os corroboram porque é o que o povo quer ouvir e ler. A voz do povo é a voz da razão? Se ela for guiada pelo senso comum e por mentiras, não.

Neste exato momento quero convencê-los de que meus argumentos são corretos. Neste mesmo instante você pode estar pensando em quais argumentos escreverá no comentário desse texto para convencer aos outros e a mim de que você está certo. O vendedor quer te convencer de que a roupa ficou boa para ter a comissão. O psicólogo quer te mostrar o quão responsável você é por tudo o que ocorre na sua vida. O professor quer te convencer a estudar e assim vai…

Isto é: todos nós queremos convencer a todos os outros acerca de alguma coisa, seja ela qual for. Sempre conseguiremos? Não, de maneira nenhuma e está tudo bem. Haverá debates? Sim e isso é maravilhoso! É no debate que suscitamos novas ideias, novos argumentos, que podemos, inclusive, mudar de opinião e não ter aquela velha opinião formada sobre tudo (senso comum) e ser um pouco da metamorfose ambulante de Raul Seixas.

O importante é debater, mesmo que discordando, com respeito, educação e empatia, se colocando no lugar do outro e não disseminando discurso de ódio e, assim, desrespeitando os direitos humanos, não só na redação do Enem.

Pensem nisso na hora de escrever a redação do Enem ou de qualquer outra prova, no almoço em família, no churrasco com os amigos e na ceia de Natal deste ano.

Acesso em: 10 de dezembro de 2018, às 23h01

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Intertextualidade



Mesmo vendo-a pela primeira, dificilmente um leitor atento não saberá de imediato o sentido da palavra Intertextualidade. E por um motivo simples: nela, perceberá a presença do radical em "textual", que contém o significado da palavra. No início, verá o prefixo “inter” (entre); e, no final, o sufixo “idade” (condição, estado).

Ou seja, Intertextualidade é o diálogo que o usuário da língua estabelece com outros textos, seja na oralidade, seja na escrita.

Competência linguística, aliás, que desenvolvemos desde nossa infância, antes mesmo de irmos à escola. No convívio familiar, com os amigos, com a comunidade, a interatividade humana faz com que utilizemos outros discursos na construção de nossos discursos. Até aqui não existe plágio, que é um tipo de intertextualidade.

Acrescente-se que o diálogo pode ser estabelecido não só entre textos verbais, mas também entre textos imagéticos.

Veja:


Neste momento, ficaremos com a intertextualidade entre textos verbais. Elas se classificam em:

– Alusão: Trata-se de uma referência a outros textos, pessoas, situações sem a citação nominal.
Ex. No Brasil, existem ex-presidentes que parecem continuar no poder.

– Citação: É a transcrição de texto alheio, por isso deve vir, obrigatoriamente, marcada por aspas.
Ex. O escritor italiano Umberto Eco disse que “Todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça parte de seu trabalho.”

– Paráfrase: O autor irá produzir um texto que irá ao encontro das ideias presentes em outro texto. Em textos não literários, ocorre, por exemplo, em resumos escolares. Veja, na área da arte, a paráfrase criada por Jorge Bem Jor, em “País tropical”:
Ex. Moro num país tropical / Abençoado por Deus / E bonito por natureza.

Com o Hino Nacional Brasileiro:

Ex. Do que a terra mais garrida / Teus risonhos, limpos campos têm mais flores
Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida em teu seio mais amores.

– Paródia: Ao contrário da paráfrase, a paródia vai de encontro às ideias presentes em outro texto, normalmente por um viés irônico. Veja o diálogo do poeta Eduardo Alves da Costa com o nosso hino:

Ex. Minha terra tem Palmeiras, / Corinthians e outros times / de copas exuberantes.

– Pastiche: É a imitação de um estilo, pois se reporta a um gênero. Por exemplo, o programa Os Trapalhões é um pastiche de comédias italianas.

– Plágio: Único tipo de intertextualidade ilegal, porque o produtor textual se apropria do texto alheio e não informa a autoria original. Acontece em livros, músicas, fotografias e, também, em trabalhos escolares e acadêmicos.

Tradução: trabalho consciente e exato de transposição de um idioma para outro, entretanto desprovido de cunho artístico.

Versão: trabalho de transposição, exato e artístico.

O recurso da intertextualidade é fundamental para a produção de textos criativos e refinados. Para tanto, é necessário que o usuário da língua amplie a sua bagagem cultural, ampliando o seu conhecimento de mundo. E só é possível conseguir isso por meio de leituras variadas, principalmente, de textos literários.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Carta-Argumentativa


Algumas universidades têm cobrado nos exames vestibulares a carta-argumentativa. E apesar das semelhanças com o texto dissertativo-argumentativo, há diferenças importantes entre esses dois tipos de produção textual.

Veja:

a) Cabeçalho: na primeira linha da carta, na margem do parágrafo, aparecem o nome da cidade do remetente e a data.

Ex.: Salvador, 27 de novembro de 2017.

b) Vocativo: na linha seguinte, há o termo por meio do qual se dirige ao leitor, (marcado por vírgula). A escolha desse vocativo dependerá muito do leitor e da relação social com ele estabelecida. 

Ex.: Prezado senhor Fulano, Excelentíssimo senhor presidente Luís Inácio Lula da Silva, Caro deputado Sicrano etc.

c) Interlocutor definido: essa é a principal diferença entre a dissertação e a carta. O texto dissertativo, geralmente, possui um leitor universal. Na carta, isso muda, pois se estabelece uma comunicação particular entre o remetente e o destinatário. Logo, deve-se adaptar a linguagem e a argumentação à realidade desse destinatário e ao grau de intimidade estabelecido entre os dois. Os argumentos e informações deverão ser compreensíveis ao leitor, próximos da realidade dele.

d) Necessidade de se dirigir ao interlocutor: ao escrever uma carta, o leitor deve “aparecer” no texto; por isso, além do Vocativo, utilizam-se verbos no imperativo, que fazem o leitor perceber que é ele o interlocutor.

e) Despedida: terminada a carta, deve-se produzir uma despedida que precede a assinatura do autor. “A mais comum é “Atenciosamente”, mas, dependendo das suas intenções do locutor para com o interlocutor, será possível gerar várias outras expressões, como “De um amigo”, “Do seu eleitor”, “De alguém que deseja ser atendido”.

f) Assinatura: um texto pessoal, como é a carta, deve ser assinado pelo autor. Nos vestibulares, porém, costuma-se solicitar ao aluno que não escreva o próprio nome por extenso.


(Crônica de Moacyr Scliar)

São Paulo, 14 de agosto de 2000.

Prezados Senhores,

Uns amigos me falaram que os senhores estão para destruir 45 mil pares de tênis falsificados com a marca Nike e que, para esse fim, uma máquina especial já teria até sido adquirida. A razão desta cartinha é um pedido. Um pedido muito urgente.

Antes de qualquer coisa, devo dizer aos senhores que nada tenho contra a destruição de tênis, ou de bonecas Barbie, ou de qualquer coisa que tenha sido pirateada. Afinal, a marca é dos senhores, e quem usa essa marca indevidamente sabe que está correndo um risco. Destruam, portanto. Com a máquina, sem a máquina, destruam. Destruir é um direito dos senhores.

Mas, por favor, reservem um par, um único par desses tênis que serão destruídos para este que vos escreve. Este pedido é motivado por duas razões: em primeiro lugar, sou um grande admirador da marca Nike, mesmo falsificada. Aliás, estive olhando os tênis pirateados e devo confessar que não vi grande diferença deles para os verdadeiros.

Em segundo lugar, e isto é o mais importante, sou pobre, pobre e ignorante. Quem está escrevendo esta carta para mim é um vizinho, homem bondoso. Ele vai inclusive colocá-la no correio, porque eu não tenho dinheiro para o selo. Nem dinheiro para selo, nem para qualquer outra coisa: sou pobre como um rato. Mas a pobreza não impede de sonhar, e eu sempre sonhei com um tênis Nike. Os senhores não têm ideia de como isso será importante para mim. Meus amigos, por exemplo, vão me olhar de outra maneira se eu aparecer de Nike. Eu direi, naturalmente, que foi presente (não quero que pensem que andei roubando), mas sei que a admiração deles não diminuirá: afinal, quem pode receber um Nike de presente pode receber muitas outras coisas. Verão que não sou o coitado que pareço.

Uma última ponderação: a mim não importa que o tênis seja falsificado, que ele leve a marca Nike sem ser Nike. Porque, vejam, tudo em minha vida é assim. Moro num barraco que não pode ser chamado de casa, mas, para todos os efeitos, chamo-o de casa. Uso a camiseta de uma universidade americana, com dizeres em inglês, que não entendo, mas nunca estive nem sequer perto da universidade – é uma camiseta que encontrei no lixo. E assim por diante.

Mandem-me, por favor, um tênis. Pode ser tamanho grande, embora eu tenha pé pequeno. Não me desagradaria nada fingir que tenho pé grande. Dá à pessoa certa importância. E depois, quanto maior o tênis, mais visível ele é. E, como diz o meu vizinho aqui, visibilidade é tudo na vida.

Atenciosamente,

Um sem tênis