sábado, 21 de março de 2020

Cinco poemas para tempos difíceis



Fernando Paixão nasceu em 1955 na pequena aldeia portuguesa de Beselga, vindo a transferir-se no início de 1961 para o Brasil. Formou-se em jornalismo pela USP, iniciou e interrompeu o curso de filosofia, e defendeu tese na UNICAMP com estudo sobre a poesia do poeta português Mário de Sá-Carneiro.

Em tempos sombrios, nada melhor do que a arte - em especial, a Poesia -  para nos mantermos atentos e fortes.  

Dos cinco poemas do autor, atenção especial a CONDIÇÕES ATMOSFÉRICAS. 

Poeta visionário.

Ótima Leitura!



CATECISMO
Água benta para os olhos
ícone de circuitos e tentáculos
vaivém de saberes e cascalhos
sagrados venais profanos

agora somos cibernéticos
nem gregos nem moicanos
todos os dias oramos
Ave Maria à internet.

GUERRA
Trovão
das mortes

clareia
o carvão.

CONDIÇÕES ATMOSFÉRICAS
A noite permanece triste
no subúrbio.
Os animais humanizam os cartazes
de propaganda.
É de metal a passagem dos meses.

Pouco sabemos
do tempo vindouro.
As névoas
movimentam-se entre guindastes.

Tão indelicada
a chuva
fora de hora...

FENDA
Já não repito
os mesmos
nítidos
idos gestos

entre lábios
cresce
orvalho
o novo travo.

Não sai o som
da voz
na manhã seguinte
com igual exatidão:

mudei
de mim?

Entre ontem
e amanhã
minha face
tem o rosto
- de quem?

POÉTICA
Sem autoria e sem versos a poesia será encontrada
na pedra
no rosto e na copa das árvores ensimesmada

sinal
da sina
cor nos azulejos

o abraço das palavras
renova a presença das portas
e janelas de uma casa.

A poesia sim
se presta à prosa
da vida

invisível porcelana.

Fernando Paixão
Acesso em: 21 de março de 2020, às 13h49.

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