Julio Cortázar disse que um romance é uma luta
de boxe que se ganha por pontos, e o conto é uma luta em que se ganha por
nocaute. Dele, veremos um exemplo magistral de um conto com uma tessitura
narrativa contendo dois tempos e, como forma de provocação para sua leitura, Caro
(a) Leitor (a), tente descobrir quando ocorre o hiato entre as duas narrações.
Ótima Leitura!
Continuidade
dos parques
"Quem
comanda a narração não é a voz: é o ouvido."
Ítalo
Calvino. In: As Cidades Invisíveis.
Começara a ler o romance dias antes.
Abandonou-o por negócios urgentes, voltou à leitura quando regressava de trem à
fazenda; deixava-se interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos
personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador e
discutir com o capataz uma questão de parceria, voltou ao livro na tranquilidade
do escritório que dava para o parque de carvalhos. Recostado em sua poltrona
favorita, de costas para a porta que o teria incomodado como uma irritante
possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse de
quando em quando o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos. Sua
memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a fantasia
novelesca absorveu-o quase em seguida. Gozava do prazer meio perverso de se
afastar linha a linha daquilo que o rodeava, e sentir ao mesmo tempo que sua
cabeça descansava comodamente no veludo do alto respaldo, que os cigarros
continuavam ao alcance da mão, que além dos janelões dançava o ar do entardecer
sob os carvalhos. Palavra por palavra, absorvido pela trágica desunião dos
heróis, deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e
movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do monte. Primeiro
entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, a cara ferida pelo chicotaço
de um galho. Ela estancava admiravelmente o sangue com seus beijos, mas ele
recusava as carícias, não viera para repetir as cerimônias de uma paixão
secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal
ficava morno junto a seu peito, e debaixo batia a liberdade escondida. Um
diálogo envolvente corria pelas páginas como um riacho de serpentes, e
sentia-se que tudo estava decidido desde o começo. Mesmo essas carícias que
envolviam o corpo do amante, como que desejando retê-lo e dissuadi-lo,
desenhavam desagradavelmente a figura de outro corpo que era necessário
destruir. Nada fora esquecido: impedimentos, azares, possíveis erros. A partir
dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame
cruel mal se interrompia para que a mão de um acariciasse a face do
outro. Começava a anoitecer.
Já sem se olhar, ligados firmemente à
tarefa que os aguardava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar
pelo caminho que ia ao Norte. Do caminho oposto, ele se voltou um instante para
vê-la correr com o cabelo solto. Correu por sua vez, esquivando-se de árvores e
cercas, até distinguir na rósea bruma do crepúsculo a alameda que levaria à
casa. Os cachorros não deviam latir, e não latiram. O capataz não estaria
àquela hora, e não estava. Subiu os três degraus do pórtico e entrou. Pelo
sangue galopando em seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro
uma sala azul, depois uma varanda, uma escadaria atapetada. No alto, duas
portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e
então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto respaldo de uma poltrona de
veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.
Julio Cortázar
Do
livro Final do jogo.
Tradução
de Remy Gorga Filho.
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