Volta e
meia alguém olha atravessado quando escrevo “leiaute”, “becape” ou “apigreide”
– possivelmente uma pessoa que não se avexa de escrever “futebol”, “nocaute” e
“sanduíche”.
Deve se
achar um craque no idioma, me esnobando sem saber que “craque” se escrevia
“crack” no tempo em que “gol” era “goal”, “beque” era “back” e “pênalti” era
“penalty”. E possivelmente ignorando que esnobar venha de “snob”.
Quem é
contra a invasão das palavras estrangeiras (ou do seu aportuguesamento) parece
desconsiderar que todas as línguas do mundo se tocam, e que falar seja um
enorme beijo planetário.
As
palavras saltam de uma língua para outra, gotículas de saliva circulando em
beijos mais ou menos ardentes, dependendo da afinidade entre os falantes. E o
português é uma língua que beija bem.
Quando
falamos “azul”, estamos falando árabe. E quando folheamos um almanaque,
procuramos um alfaiate, subimos uma alvenaria, colocamos um fio de azeite,
espetamos um alfinete na almofada, anotamos um algarismo.
Falamos
francês quando vamos ao balé usando um paletó marrom, quando fazemos um croqui
ou uma maquete com vidro fumê; quando comemos uma omelete ou pedimos na boate
um champanhe ao garçom; quando nos sentamos no bidê, viajamos na maionese, ou quando
um sutiã (sob o edredom) provoca uma gafe – ou um frisson.
Falamos
tupi ao pedir um açaí, um suco de abacaxi ou de pitanga; quando vemos um urubu
ou um sabiá, ficamos de tocaia, votamos no Tiririca, botamos o braço na tipoia,
armamos um sururu, comemos mandioca (ou aipim), regamos uma samambaia, deixamos
a peteca cair. Quando comemos moqueca capixaba, tocamos cuíca, cantamos a
Garota de Ipanema.
Dá pra
imaginar a Bahia sem a capoeira, o acarajé, o dendê, o vatapá, o axé, o afoxé,
os orixás, o agogô, os atabaques, os abadás, os babalorixás, as mandingas, os
balangandãs?
Tudo
isso veio no coração dos infames “navios negreiros”.
As
palavras estrangeiras sempre entraram sem pedir licença, feito uma tsunami. E
muitas vezes nos pegando de surpresa, como numa blitz.
Posso
estar falando grego, e estou mesmo. Sou ateu, apoio a eutanásia, gosto de
metáforas, adoro bibliotecas, detesto conversar ao telefone, já passei por
várias cirurgias. E não consigo imaginar que palavras usaríamos para a pizza, a
lasanha, o risoto, se a máfia da língua italiana não tivesse contrabandeado
esse vocabulário junto com a sua culinária.
Há,
claro, os exageros. Ninguém precisa de um “delivery” se pode fazer uma
“entrega”, ou anunciar uma “sale” se se trata de uma “liquidação”. Pra quê sair
pra night de bike, se dava tranquilamente pra sair pra noite de bicicleta?
Mas a
língua portuguesa também se insinua dentro das bocas falantes de outros
idiomas.
Os
japoneses chamam capitão de “kapitan”, copo de “koppu”, pão de “pan”, sabão de
“shabon”. Tudo culpa nossa. Como o café, que deixou de ser apenas o grão e a
bebida, para ser também o lugar onde é bebido. E a banana, tão fácil de
pronunciar quanto de descascar, e que por isso foi incorporada tal e qual a um
sem-fim de idiomas. E o caju, que virou “cashew” em inglês (eles nunca iam
acertar a pronúncia mesmo).
“Fetish” vem do nosso fetiche, e não o
contrário. “Mandarim”, seja o idioma, seja o funcionário que manda, vem do
portuguesíssimo verbo “mandar”. O americano chama melaço de “molasses”,
mosquito de “mosquito” e piranha, de “piranha” – não chega a ser a conquista da
América, mas é um começo.
[...]
Uma língua viva, vibrante, maleável, promíscua – vai de boca em boca, bebendo
de todas as fontes, lambendo o que vê pela frente.
Mais de
oitocentos anos, e com um tesão de vinte e poucos.
Eduardo
Affonso
Acesso em: 16 de junho de 2020, às 14h07.
Nenhum comentário:
Postar um comentário