terça-feira, 31 de março de 2020

Verossimilhança

 

Narrar, relatar... tudo parece fazer parte de nossa rotina enquanto seres eminentemente sociais. Narramos uma história ocorrida conosco ou até mesmo com outras pessoas, ouvimos também outras tantas, sejam elas verdadeiras ou não, relatamos um acontecimento por nós presenciado, enfim, muitas são as circunstâncias em que nos encontramos narrando algo. Seja por meio da oralidade, seja pela escrita, todo interlocutor espera, ao menos, que aquilo que contamos tenha um início, meio e fim.

Numa história, a cada novo acontecimento vão surgindo fatos que desencadeiam outro; tudo parece ir se complicando, chegando a um ponto máximo, até que, enfim, ou tudo se resolve ou a história toma rumos inesperados pelo próprio leitor/ouvinte. É natural, pois faz parte da trama, do enredo. E é sobre esse desencadear de ações que apostamos nossa discussão acerca de um importante elemento que norteia o gênero narrativo: a verossimilhança


Para compreendê-la, devemos partir do pressuposto de que os fatos não precisam ser verdadeiros, isto é, correspondentes à realidade, mas que sejam dotados de lógica, coerência, pois o que se espera é que eles façam sentido.Ainda que inventados, precisam satisfazer às expectativas do interlocutor, de modo a fazer com que ele encontre sentido naquilo que está compartilhando. Caso contrário, as ideias ficarão incompreensíveis, vagas. Tal aspecto se deve ao fato de que quando estamos lendo, parece que mergulhamos naquele universo, e mais: o que na realidade é fictício, à medida que vamos estabelecendo familiaridade, parece se tornar real, tamanha é a organização dos fatos, levando em consideração a forma como eles nos são repassados.   
 

Acredite! Isso é verossimilhança!

Acesso em: 31 de março de 2020, às 17h41

sábado, 21 de março de 2020

Cinco poemas para tempos difíceis



Fernando Paixão nasceu em 1955 na pequena aldeia portuguesa de Beselga, vindo a transferir-se no início de 1961 para o Brasil. Formou-se em jornalismo pela USP, iniciou e interrompeu o curso de filosofia, e defendeu tese na UNICAMP com estudo sobre a poesia do poeta português Mário de Sá-Carneiro.

Em tempos sombrios, nada melhor do que a arte - em especial, a Poesia -  para nos mantermos atentos e fortes.  

Dos cinco poemas do autor, atenção especial a CONDIÇÕES ATMOSFÉRICAS. 

Poeta visionário.

Ótima Leitura!



CATECISMO
Água benta para os olhos
ícone de circuitos e tentáculos
vaivém de saberes e cascalhos
sagrados venais profanos

agora somos cibernéticos
nem gregos nem moicanos
todos os dias oramos
Ave Maria à internet.

GUERRA
Trovão
das mortes

clareia
o carvão.

CONDIÇÕES ATMOSFÉRICAS
A noite permanece triste
no subúrbio.
Os animais humanizam os cartazes
de propaganda.
É de metal a passagem dos meses.

Pouco sabemos
do tempo vindouro.
As névoas
movimentam-se entre guindastes.

Tão indelicada
a chuva
fora de hora...

FENDA
Já não repito
os mesmos
nítidos
idos gestos

entre lábios
cresce
orvalho
o novo travo.

Não sai o som
da voz
na manhã seguinte
com igual exatidão:

mudei
de mim?

Entre ontem
e amanhã
minha face
tem o rosto
- de quem?

POÉTICA
Sem autoria e sem versos a poesia será encontrada
na pedra
no rosto e na copa das árvores ensimesmada

sinal
da sina
cor nos azulejos

o abraço das palavras
renova a presença das portas
e janelas de uma casa.

A poesia sim
se presta à prosa
da vida

invisível porcelana.

Fernando Paixão
Acesso em: 21 de março de 2020, às 13h49.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Antes do Nome



 Adélia Prado nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 13 de dezembro de 1935, e lá vive até hoje; em razão disso, os temas recorrentes em sua poesia são a mulher e a casa , a missa diária, o cheiro do mato, os vizinhos, ou seja, a vida cotidiana que se repete, mas, sob o olhar de D. Adélia - como carinhosamente gostam de lhe chamar seus admiradores -, é sempre nova.

No entanto, seus norteadores são a fé cristã e a condição da mulher, pois permeiam toda sua obra.

Ótima Leitura!
Antes do Nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o «de», o «aliás»,
o «o», o «porém» e o «que», esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror. 
 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Declaração de Amor à Língua Portuguesa


             
          Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.
          Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Ás vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la — como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
         Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E esse desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
        Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
        Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.




                                                                


A Descoberta do Mundo, 1984.