sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Viva João Ubaldo Ribeiro!

Vez em quando aparecem no linguajar brasileiro excrescências como “elencar”, “focado”, “tipo assim” e outras de igual naipe. O nascedouro dessas construções tem origem diversa: podem vir, por exemplo, de empréstimos de outras línguas, de novelas e programas de tevês, da oralidade do dia a dia dentre outros. E a sua repetição excessiva pelos falantes e produtores textuais se dá, provavelmente, por uma visão torta de que, ao usar essas construções, o usuário estaria em um contexto interativo superior ao seu oponente. Nada mais enganoso! Na verdade, elas mais empobrecem do que enriquecem o repertório linguístico do seu usuário, pois, se é repertório, como podemos nos mover linguística e diariamente com um número tão reduzido de palavras?!

No texto que hoje postamos, reverenciando um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, o palavrão (fique à vontade para escolher o sentido que melhor lhe convier!) paralimpíadas é o mote para João Ubaldo apontar e disparar sua metralhadora afiada para os adeptos, repetimos, dessas excrescências linguísticas.

Dá-lhe, João!


Paralimpíadas é a mãe

Certamente eu descobriria no Google, mas me deu preguiça de pesquisar e, além disso, não tem importância saber quem inventou essa palavra grotesca, que agora a gente ouve nos noticiários de televisão e lê nos jornais. O surpreendente não é a invenção, pois sempre houve besteiras desse tipo, bastando lembrar os que se empenharam em não jogarmos futebol, mas ludopédio ou podobálio. O impressionante é a quase universalidade da adoção dessa palavra (ainda não vi se ela colou em Portugal, mas tenho dúvidas; os portugueses são bem mais ciosos de nossa língua do que nós), cujo uso parece ter sido objeto de um decreto imperial e faz pensar em por que não classificamos isso imediatamente como uma aberração deseducadora, desnecessária e inaceitável, além de subserviente a ditames saídos não se sabe de que cabeça desmiolada ou que interesse obscuro. Imagino que temos autonomia para isso e, se não temos, deveríamos ter, pois jornal, telejornal e radiojornal implicam deveres sérios em relação à língua. Sua escrita e sua fala são imitadas e tidas como padrão e essa responsabilidade não pode ser encarada de forma leviana.

Que cretinice é essa? Que quer dizer essa palavra, cuja formação não tem nada a ver com nossa língua? Faz muitos e muitos anos, o então ministro do Trabalho, Antônio Magri, usou a palavra "imexível" e foi gozado a torto e a direito, até porque ele não era bem um intelectual e era visto como um alvo fácil. Mas, no neologismo que talvez tenha criado, aplicou perfeitamente as regras de derivação da língua e o vocábulo resultante não está nada "errado", tanto assim que hoje é encontrado em dicionários e tem uso corrente. Já o vi empregado muitas vezes, sem alusão ao ex-ministro. Infutucável, inesculhambável e impaquerável, por exemplo, são palavras que não se acham no dicionário, mas qualquer falante da língua as entende, pois estão dentro do espírito da língua, exprimem bem o que se pretende com seu uso e constituem derivações perfeitamente legítimas.

Por que será que aceitamos sem discutir uma excrescência como "paralimpíada"? Já li alguns protestos na imprensa e na internet, mas a experiência insinua que paralimpíada chegou para ficar e ter seu uso praticamente imposto. Ao contrário dos portugueses, parecemos encarar nossa língua com desprezo e nem sequer pensamos em como, ao abastardá-la e ao subordiná-la a padrões e usos estranhos a ela, vamos aos poucos abdicando até de nossa maneira de ver o mundo e falar dele, nossa maneira de existir. Talvez isso, no pensar de alguns, seja desejável, mas o problema é que, por esse caminho, nunca se chegará à identificação com o colonizador que tanto se admira e inveja, mas, sim, à condição cada vez mais arraigada de colonizado, que recebe tudo de segunda mão, até suas próprias opiniões e valores.

Mas há um pequeno consolo em presenciar esse tipo de vergonheira servil. Consolo meio torto, mas consolo. Refiro-me ao fato de que nossa crescente ignorância não se limita a estropiar nossa língua, mas faz o mesmo com idiomas que consideramos superiores em tudo, como o inglês. Hoje isto caiu em desuso, mas smoking já foi aqui "smocking" durante muito tempo. Assim como doping já foi "dopping". Quanto a este, assinale-se que o som, digamos fechado, do O, em inglês, foi trocado aqui por um som aberto, é o dópin. O mesmo tipo de fenômeno ocorreu com volley, cuja primeira vogal em inglês é aberta, mas em brasinglês é fechada e já entrou no português assim.

No setor de nomes próprios, a vingança é mais completa. Em primeiro lugar, transformamos os sobrenomes deles em prenomes nossos e enchemos o País de jeffersons, washingtons, edisons (aliás, em brasinglês, Edson, como Pelé), lincolns, roosevelts e até mesmo kennedys e nixons. E não perdoamos os contemporâneos. Não só trocamos o H por E em Elizabeth, como até hoje há publicações que se referem a Margareth Thatcher, ou à princesa Margareth. Esse nome nunca teve H no fim, mas aqui é assim não só em muitos jornais quanto no caso de nossas meninas, como atesta o exemplo da minha linda e talentosa conterrânea Margareth Menezes. E das Nathalies que assim foram batizadas em homenagem a Natalie Wood. E dos Phellipes, inspirados no príncipe Philip, das Daianes da Diane, a lista não acaba.

De maneira semelhante, também alteramos não somente a pronúncia, mas as regras gramaticais do inglês. Por exemplo, é quase unânime, entre todos os numerosos militantes do brasinglês, a convicção de que qualquer plural inglês terminado em S deve ter essa letra precedida de um asterisco. Acho que é barbada apostar que, em todas as cidades brasileiras de médias para cima, serão encontrados pelo menos uma placa e cinco cardápios anunciando "Drink's". É mais chique e até o Galeão, não há muito tempo, tinha armários (lockers) de aluguel, encimados pelo letreiro "Locker's", o que fazia os falantes de inglês entender que os armários eram propriedade de um certo Mr. Locker. No Galeão, aliás, gate (portão) já soou como gay tea (chá gay) e shuttle service (ponte aérea) como chateau service (o que lá seja isso). Agora mudou, mas to (para) deu para sair um prolongado tchuu, que, a um ouvido americano, há de soar como uma onomatopeia de espirro ou partida de maria-fumaça.

Mas, até mesmo por causa ("por causa", não, por conta; agora só se diz "por conta", vai ver que vem do inglês on account of) dessas paralimpíadas, receio que as contraofensivas nacionais não serão suficientes para neutralizar a subordinação de nossa cabeça, através do incalculável poder da língua. Acho que, coletivamente, aspiramos a essa subordinação. Tem sido muito lembrado o complexo de vira-lata de que falou Nélson Rodrigues. Pois é, é isso mesmo e é também caminho seguro para sermos vira-latas de verdade.

João Ubaldo Ribeiro
 
O Estado de São Paulo
 
Acesso em: 19 de julho de 2014, às 14h33

Abraços Fraternos!

Paulo Jorge

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Armando Oliveira, o Futebol e o Torcedor

No encerramento da publicação de crônicas que possuem o futebol como tema, convocamos para a “grande final” um jornalista pelo qual nós baianos com mais de trinta temos um imenso carinho e respeito. Armando Oliveira.

Demasiadamente humano, Armando escreveu não apenas sobre futebol, mas também registrou o universo cotidiano de pessoas simples, com rara sensibilidade.

No livro Crônicas de Armando Oliveira, do qual foi retirada a crônica desta semana, Guido Guerra afirma sobre o jornalista: “Fascina-me também, e talvez mais, o universo ficcional que criou nas páginas do Jornal da Bahia, na coluna amenidades, pela qual se transportava da Massaranduba, onde se movimentavam seres extuantes (sic) de vida como Dona Miúda e o compadre, mais o mundo de insinuações que os cercava.

E esse ambiente com seus personagens plenos de humanidade você, Leitor, poderá conferir nesse texto publicado na década de 70, no antigo Jornal da Bahia.

Um show de bola regado com humor e baianidade.

Ótima leitura!


A tragédia tricolor

A barra, no famoso solar de Massaranduba, anda mais pra Lúcifer que pra Irmã Dulce.
Desde a noite do último domingo que Antônio Bispo ingressou numa mudez de deixar o Dr. Falcão com inveja, só abre a boca pra comer e, assim mesmo, sem aquela voracidade habitual.
Dona Miúda, coitada, embora sabedora das causas que levaram o compadre a arriar todos os pneus, cair na fossa, entrar numa de horror, teme puxar conversa, ainda mais que não dispõe de argumentos muito consoladores.
Ontem, porém, a loquacidade feminina fez-se intolerável e ela, após três tossidelas de advertência, resolveu cutucar a fera com vara curta:
– Se ficar calado resolvesse alguma coisa, Deus não fazia a gente nascer com língua!
– Hum!
– Eu sei que foi 1x1, deu no jornal, no rádio e na televisão, não precisa você ficar se martirizando...
– Em quem falou em desgraça de futebol aqui, diga?
– Então eu não sei esta tromba toda é por causa do Bahia!
– Acho bom a senhora não mexer com quem está no seu quieto, por favor, tá bem!
– Engraçado, quando o Ypiranga do finado perde, você fica dando risada, não respeita nem a memória do falecido...
– Que comparação mais besta, comadre, tenha paciência!
– Esse povo do Bahia é muito cheio de nove horas, ganha quase todo dia e não suporta nem empatar...
– Isso é problema nosso, não interessa a ninguém!
– Peraí, não engrossa não, que eu também parto pra ignorância!
– Será que a senhora não compreende a minha dor, não respeita a minha mágoa, não entende o meu drama?
– Eu, hein, esconjuro!
– A senhora sabe o que é cem mil pessoas preparando uma festa e, no fim, dar jegue!
– É, mas quando a Seleção perdeu a Copa, você quase nem ligou...
– E a senhora quer comparar aquela Seleção fajuta com o glorioso Esporte Clube Bahia?
– Fala baixo, homem, cuidado que essas palavras pode dar bode!
– Pode nada, comadre, depois do que aconteceu domingo, desgraça pouca eu tiro de letra!
– Mas não disse que o Bahia fez uma boa campanha, deu no rádio?
– Foi o doutor Paulo Virgílio Maracajá Pereira quem falou isto.
– Quem?
– O doutor Maracajá, aquele que fala em quatro rádios e duas televisões ao mesmo tempo...
– Misericórdia!
– Segunda-feira eu não tive coragem de ouvir rádio, o sofrimento era demais...
– Deve ter sido ele, foi um com uma voz de lamentação que me deu pena...
– Não me conformo, comadre, a gente ser desclassificado por um time que tinha até Vanuza!
– E ela não tava de barriga?
– Um time cheio de mutreta, disse que o presidente deles meteu a mão no dinheiro, uma vergonha!
– E o Bahia não vai protestar?
– Sei lá, comadre, parece que nossa diretoria não suporta ouvir falar nesta palavra “protesto”...
– Por que será, hein?
– Antigamente a gente partia firme pro “tapetão” e ganhava todas!
– Disse que o Leão deu uma dentada no Beijoca, foi verdade?
– Pois é, mordeu o nosso ídolo no joelho, mas lá na Argentina ele não dividia uma!
– Valha-me Deus!
– E ainda me arranjaram um juiz estrangeiro, com um nome danado de complicado, parece que é até alemão!
– O mal é esse compadre, chegam esses gringos não sei de onde e fazem o que querem aqui na Bahia!
– Ninguém toma uma providência e fica tudo por isso mesmo!
– O negócio agora, como disse o homem da rádio, é sair pra outra!
– É, mas este negócio de “sair pra outra” parece até desculpa da torcida do Vitória...

Crônicas de Armando Oliveira, págs. 88 - 90.
EGBA / Governo do Estado da Bahia. 2006.

Abraços Fraternos,

Paulo Jorge

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016



Xico Sá, o futebol e as mulheres

Dentre os recursos gramaticais e literários utilizados por Xico Sá em seus textos, talvez a intertextualidade seja aquela que o escritor utiliza com maior riqueza e abundância. As referências a times de futebol, jogadores, poetas, escritores e músicos brasileiros dentre outros são frequentes em suas crônicas esportivas, evidenciando o vasto repertório cultural do escritor cearense.

Xico Sá começou sua carreira no Recife e atualmente é colunista esportivo do jornal Folha de S. Paulo. Eventualmente, participa como um dos apresentadores do time masculino do Saia justa, do GNT, programa de debates sobre temas da atualidade do canal fechado.

Nesta crônica - Mais mulher no estádio -, publicada na Folha de S. Paulo, em 5 de abril de 2014, Xico alia o futebol a outro tema que lhe é bastante caro, a mulher.

Ótima leitura!
 

Mais mulher no estádio

Amigo torcedor, amigo secador, "apenas" 26% acham que roupa justifica ataque a mulher. Noves fora o erro do Ipea, arrisco, sem carecer qualquer enquete, que nos estádios de futebol esse número de porcos chauvinistas (nada contigo, caro palmeirense!) ultrapassa os 65% anteriormente divulgado pelo instituto de pesquisa do governo.

Quando a mulher não está acompanhada do marido ou namorado, nossa madre, as agressões remetem aos marmanjossauros de caverna. Short curto, mesmo no purgatório da beleza e do caos de um verão carioca, é risco de vida. Ao ponto de blogs sobre comportamento feminino aconselharem trajes quase clericais às torcedoras que vão a campo.

Por estas e por outras a presença da mulher nas arquibancadas é ainda tão pequena, mesmo com o aumento nas últimas décadas. Uma pena. Além de dar uma suavizada naquele desagradável ambiente macho, a participação feminina poderia até mesmo reduzir a violência dos doentes. Se o cara vai ao estádio com a mãe, a mulher, a namorada etc., naturalmente fica mais manso, menos atraído pela selvageria. Acredito.

Nada mais comovente do que uma mulher com febre de bola. Como uma botafoguense que vi na noite de quarta-feira no Rio de Janeiro. Ela chegava ao Galeto Sats, o melhor fim de noite de Copacabana, depois de uma jornada infeliz do alvinegro no Maraca. Triste, solitária e final, como no título do romance bueníssimo do craque argentino Osvaldo Soriano.

Vestida conforme os manuais, para se proteger da falta de civilidade do "país cordial", a estrela solitária -calça jeans e camiseta vintage do Fogão- ainda teve que encarar a euforia dos flamenguistas. Tudo bem, é frequentadora do bar, estava entre amigos. O que quero exaltar é a beleza da cena. Ela trazia do Maraca toda a melancolia que só um botafoguense carrega. Se a vida dói, drinque caubói. Sim, ela pediu uma vodka para espantar os males da angústia futebolística.

Alegre, como as rubro-negras naquela mesma taberna, ou abatidas pela derrota, nada mais bonito do que uma mulher com passionalidade clubística. Por mais mulheres nos estádios. Por mais "sãopaulindas", no dizer dos tricolores, por mais sereias santistas, mais corintianas como a minha colossal enfermeira do Ipiranga, mais ragazze palestrinas...

Por mais marias bonitas e dadás (a mulher de Corisco) na Lampions League, o campeonato mais emocionante do país. E olhe que muitas mulheres foram à Ilha do Retiro neste Sport 2x0 Ceará. Só a Lampíons salva o nosso futebol. Perto desse torneio do Nordeste a Libertadores da América parece jogo de comadres. Que duelo de renegados. Como na bela crônica de Thalles Gomes para o blog "Impedimento", no primeiro jogo da final da Copa do Nordeste, a glória brotou da inhaca. Futebol ao melhor estilo "onde os fracos não têm vez".

Xico Sá
Abraços Fraternos!

Paulo Jorge

domingo, 10 de janeiro de 2016

Luis Fernando Veríssimo, o futebol e a família


A crônica esportiva desta semana possui a autoria de um torcedor fanático pelo futebol e pelo Sport Club Internacional, de Porto Alegre.

Exímio observador, Veríssimo investiga em suas crônicas o comportamento da sociedade brasileira, a partir da presença recorrente do núcleo familiar, normalmente composto por um pai, uma mãe e um filho / filha, como pode ser visto em Sexa, Férias, Festa de criança, As mentiras que os homens contam dentre outras histórias.

Atualmente, o escritor gaúcho mantém uma coluna diária no jornal O Globo e, às vezes, escreve textos de humor para programas humorísticos da TV Globo.

Na crônica que reproduzimos hoje - Aquela bola -, o cronista traz de novo o núcleo familiar desta vez inserido em um contexto de futebol. Observe que, ao narrar uma cena capital de um jogo de futebol ocorrido entre filho do narrador e os colegas, Veríssimo faz uma crítica ao comportamento social do brasileiro, acrescente a isso, a sempre presente diversão com a Gramática da Língua Portuguesa.

Ótima leitura!
 

Aquela bola

Na volta do jogo, o pai dirigindo o carro, a mãe ao seu lado, o garoto no banco de trás, ninguém dizia nada. Finalmente o pai não se aguentou e falou:

– Você não podia ter perdido aquela bola, Rogério.

– Luiz Otávio… – começou a dizer a mãe, mas o pai continuou:

– Foi a bola do jogo. Você não dividiu, perdeu a bola e eles fizeram o gol.

– Deixa o menino, Luiz Otávio.

– Não. Deixa o menino não. Ele tem que aprender que, numa bola dividida como aquela, se entra pra rachar. O outro, o loirinho, que é do mesmo tamanho dele, dividiu, ficou com a bola, fez o passe para o gol e eles ganharam o jogo.

– O loirinho se chama Rubem. É o melhor amigo dele.

– Não interessa, Margarete. Nessas horas não tem amigo. Em bola dividida, não existe amigo.

– E se ele machucasse o Rubem?

– E se machucasse? O Rubem teve medo de machucar ele? Não teve. Entrou mais decidido do que ele na bola, ficou com ela e eles ganharam o jogo.

– Você está dizendo para o seu filho que é mais importante ficar com a bola do que não machucar um amigo?

– Estou dizendo que em bola dividida ganha quem entra com mais decisão. Amigo ou não.

– Vale rachar a canela de um amigo pra ficar com a bola?

– Vale entrar com firmeza, só isso. Pé de ferro. Doa a quem doer.

– É apenas futebol, Luiz Otávio.

– Aí é que você se engana. Não é apenas futebol. É a vida. Ele tem que aprender que na vida dele haverão várias ocasiões em que ele terá que dividir a bola pra rachar e…

– Haverá – disse Rogério, no banco de trás.

– O quê?

– Acho que não é “haverão”. É “haverá”. O verbo haver não…

– Ah, agora estão corrigindo meu português. Muito bem! Eu não sou apenas o pai insensível, que quer ver o filho quebrando pernas pra vencer na vida. Também não sei gramática.

– Luiz Otávio…

– Pois fiquem sabendo que o que se aprende na vida é muito mais importante do que o que se aprende na escola. Está me ouvindo, Rogério? Um dia você ainda vai agradecer ao seu pai por ter lhe ensinado que na vida vence quem entra nas divididas pra valer.

– Como você, Luiz Otávio?

– O quê?

– Você dividiu muitas bolas pra subir na vida, Luiz Otávio? Não parece, porque não subiu.

– Ora, Margarete…

– Conta pro Rogério em quantas divididas você entrou na sua vida. Conta por que o Simão acabou chefe da sua seção enquanto você continuou onde estava. Conta!

– Margarete…

– Conta!

– Eu estava falando em tese…

Luis Fernando Veríssimo
Abraços Fraternos,

Paulo Jorge

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Armando Nogueira, o futebol e a sociedade


A postagem desta semana traz outro craque da crônica esportiva brasileira. Armando Nogueira, contemporâneo de Nelson Rodrigues, assim como este, construiu sua obra literária com estilo ao mesmo tempo simples e refinado. Um olhar político e diferenciado que transcendia os limites do ambiente esportivo, pois, ao analisar uma partida de futebol, o cronista analisava o Brasil.

Mas se em Nelson Rodrigues a veia política se mostra ferina e corrosiva; em Armando Nogueira, ela advém do inusitado, do inesperado da situação esportiva. E com um refinamento humorístico que não deixou herdeiros na crônica esportiva brasileira.

O justo é um texto antológico.

Ótima leitura!


O justo

O treinador reuniu a turma no vestiário e escalou doze: onze e o goleiro. O capitão do time estranhou, avisando que havia gente demais. O técnico, porém, sustentou a escalação:

— Isso é problema do juiz, o teu é jogar e tentar ganhar a partida.

E lá se foi o time para o campo.

Cinco minutos de jogo, a torcida começou a gritar, alertando o árbitro: “O Pipira tem doze!”. O árbitro interrompeu a partida, contou os times e deu uma bronca no capitão, que, por sua vez, passou a bola ao treinador:

— Fala co’ home ali.

O juiz foi ao técnico e mandou retirar o excedente. Uma confusão tremenda na pista. O técnico chamou o árbitro para uma conversa em particular. Saíram os dois na direção do centro do campo. A torcida, aos berros, descompunha todo o mundo pelo atraso.

Os dois isolados no grande círculo, o técnico pôs a mão no ombro do juiz e entrou nas explicações:

— O problema é o seguinte: eu sou um homem de cinquenta anos, estreando na profissão. Eu sou novo aqui na terra. Acontece que, hoje de manhã, o presidente do clube me deu um bocado de nome pra pôr no time. Dois são protegidos do delegado, quatro do comandante do destacamento, o goleiro é filho do gerente do banco, o presidente diz que os dois pontas-de-lança têm que jogar de qualquer maneira. Eu fui escalando, escalando...

— É, mas passou da conta — diz o árbitro, inflexível.

— E eu não sei que passou? Ia ser mais. Por sorte, o sobrinho do prefeito amanheceu com o pé inchado e pediu ao tio para não jogar. Se não, entravam treze.

— Bom, mas para começar o jogo, o senhor tem que tirar logo um... — diz o juiz.

— Eu tirar um? Deus me livre. Tire o senhor. Por mim o time joga com doze. Se o senhor está dificultando, vai lá o senhor e tira um, escolhe lá um. O mais que eu posso fazer é colaborar com o senhor. Por exemplo, não tire nem o cinco nem o seis, que dá bolo com o chefe de polícia. E o pior é que agora eu já confundi tudo: não sei mais se o oito é gente do comandante do destacamento ou se é o filho do gerente do banco...

O árbitro encarou o técnico do Pipira, enfiou o apito no bolso e saiu como uma fera:

— Doze contra, comigo, não. Doze contra onze, só se me expulsarem da Liga.

Parou diante do banco dos reservas do Serrinha F. C. e dirigiu-se ao técnico, sentencioso como nunca:

— Carvalho, bota mais um dos teus homens em campo, Carvalho. Eu tenho horror a injustiça.

Armando Nogueira. www@filologia.org.br

Abraços Fraternos!

Paulo Jorge

sábado, 2 de janeiro de 2016

 Nelson Rodrigues, o futebol e o brasileiro
 

Ao longo da realização da Copa do Mundo de Futebol de 2014, publicaremos, aqui, crônicas que possuem o esporte bretão como tema; para essa empreitada, convocamos cinco dos mais representativos cronistas esportivos brasileiros das últimas décadas. Além disso, servem elas como reflexão sobre a leitura e a produção literárias.

Na semana da abertura, postamos uma crônica de Nelson Rodrigues publicada oito anos após o "Maracanazo", neologismo criado pelos uruguaios, segundo me disse o jornalista Antônio Vieira, para materializar a inacreditável vitória do Uruguai frente ao Brasil, na final da Copa do Mundo, em 1950, em pleno Maracanã, à época, o maior e mais famoso estádio do mundo. Dor e perplexidade latentes até hoje no imaginário do torcedor brasileiro.

Observe que, ao longo do texto, Nelson Rodrigues estabelece uma interação constante com o leitor, a ponto de termos uma sensação de estar em uma mesa de bar conversando com ele. Para tanto, o cronista carioca se utiliza de um vocabulário às vezes culto, às vezes oral, e marcações constantes de interatividade ao fazer, por exemplo, perguntas ao leitor, responder pelo leitor e sempre com a verve rodriguiana em movimento. No final, tem-se uma crônica esportiva, cultural, política e social construída com competência e criatividade, gênero literário, aliás, em que o Brasil, assim como no futebol, é mestre.

Um texto brasileiro, por excelência.

Ótima Leitura!


Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso
e a esperança mais frenética

Hoje, vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda a parte, há quem esbraveje: — “O Brasil não vai nem se classificar!” E, aqui, eu pergunto: — não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: — menos a dor de cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: — “extraiu” de nós o título como se fosse um dente.

E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: — se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas, e sessenta milhões de brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: — eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante enxertado do Flamengo. Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: — temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?” Eu explico.

Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos. Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática.

Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.

Manchete Esportiva, 31/5/1958

Abraços Fraternos,

Paulo Jorge