quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Armando Nogueira, o futebol e a sociedade


A postagem desta semana traz outro craque da crônica esportiva brasileira. Armando Nogueira, contemporâneo de Nelson Rodrigues, assim como este, construiu sua obra literária com estilo ao mesmo tempo simples e refinado. Um olhar político e diferenciado que transcendia os limites do ambiente esportivo, pois, ao analisar uma partida de futebol, o cronista analisava o Brasil.

Mas se em Nelson Rodrigues a veia política se mostra ferina e corrosiva; em Armando Nogueira, ela advém do inusitado, do inesperado da situação esportiva. E com um refinamento humorístico que não deixou herdeiros na crônica esportiva brasileira.

O justo é um texto antológico.

Ótima leitura!


O justo

O treinador reuniu a turma no vestiário e escalou doze: onze e o goleiro. O capitão do time estranhou, avisando que havia gente demais. O técnico, porém, sustentou a escalação:

— Isso é problema do juiz, o teu é jogar e tentar ganhar a partida.

E lá se foi o time para o campo.

Cinco minutos de jogo, a torcida começou a gritar, alertando o árbitro: “O Pipira tem doze!”. O árbitro interrompeu a partida, contou os times e deu uma bronca no capitão, que, por sua vez, passou a bola ao treinador:

— Fala co’ home ali.

O juiz foi ao técnico e mandou retirar o excedente. Uma confusão tremenda na pista. O técnico chamou o árbitro para uma conversa em particular. Saíram os dois na direção do centro do campo. A torcida, aos berros, descompunha todo o mundo pelo atraso.

Os dois isolados no grande círculo, o técnico pôs a mão no ombro do juiz e entrou nas explicações:

— O problema é o seguinte: eu sou um homem de cinquenta anos, estreando na profissão. Eu sou novo aqui na terra. Acontece que, hoje de manhã, o presidente do clube me deu um bocado de nome pra pôr no time. Dois são protegidos do delegado, quatro do comandante do destacamento, o goleiro é filho do gerente do banco, o presidente diz que os dois pontas-de-lança têm que jogar de qualquer maneira. Eu fui escalando, escalando...

— É, mas passou da conta — diz o árbitro, inflexível.

— E eu não sei que passou? Ia ser mais. Por sorte, o sobrinho do prefeito amanheceu com o pé inchado e pediu ao tio para não jogar. Se não, entravam treze.

— Bom, mas para começar o jogo, o senhor tem que tirar logo um... — diz o juiz.

— Eu tirar um? Deus me livre. Tire o senhor. Por mim o time joga com doze. Se o senhor está dificultando, vai lá o senhor e tira um, escolhe lá um. O mais que eu posso fazer é colaborar com o senhor. Por exemplo, não tire nem o cinco nem o seis, que dá bolo com o chefe de polícia. E o pior é que agora eu já confundi tudo: não sei mais se o oito é gente do comandante do destacamento ou se é o filho do gerente do banco...

O árbitro encarou o técnico do Pipira, enfiou o apito no bolso e saiu como uma fera:

— Doze contra, comigo, não. Doze contra onze, só se me expulsarem da Liga.

Parou diante do banco dos reservas do Serrinha F. C. e dirigiu-se ao técnico, sentencioso como nunca:

— Carvalho, bota mais um dos teus homens em campo, Carvalho. Eu tenho horror a injustiça.

Armando Nogueira. www@filologia.org.br

Abraços Fraternos!

Paulo Jorge

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